As Tragédias dos Tempos Presentes - sobre a atualidade de Fausto.
- Cláudia Enabe
- 8 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
O que o mito de Fausto pode nos ensinar? – o título do artigo publicado em setembro por Benjamin Ramm no site da BBC apresenta o mito de Fausto como fonte incessante de compreensão sobre um mundo declaradamente anti-mítico. A publicação de um artigo a respeito da história do alquimista pactário em setembro deste ano revela-se significativa para responder à pergunta proposta pelo próprio título, uma vez que nos encontramos em face de uma realidade na qual os anseios de liberdade e desenvolvimento humano pleno preconizados pelos séculos anteriores encontram-se não somente não-concretizadas, mas esfaceladas. “Quisera eu ver tal povoamento novo/ E em solo livre ver-me em meio a um livre povo”, clama o Fausto de Goethe durante cena na qual o personagem, cego, acredita que ouve os sons da construção de um grandioso canal de drenagem. Contudo, não se constrói canal algum: cava-se a cova do alquimista. Lida em consonância com o presente, produto das convulsões históricas captadas com precisão pela obra de Goethe, a cena adquire um caráter iluminador.
A versão goetheniana é reconhecida pelo autor do artigo como a mais influente para o estabelecimento da lenda faustica no imaginário moderno. O drama em duas partes escrito por Johann Wolfgang von Goethe perdurou durante toda a vida intelectual do autor, datando a gênese da peça de 1772 e a publicação do último volume, um ano antes da morte do escritor, de 1832. Os períodos de gestação e escritura do Fausto coincidem com o momento decisivo de triunfo das ideias sob as quais se erige o mundo em que vivemos, sendo que a magnus opus de Goethe torna-se uma das maiores obras de arte já produzidas pela apreensão densa das contradições da nova sociedade plasmadas em forma artística de grande originalidade e maestria.
A fórmula do pacto, por exemplo, configura-se como uma aposta entre o Diabo e Fausto, diferentemente dos pactos descritos nas versões populares e na peça de Christopher Marlowe. O crítico alemão Michael Jaeger explica como a frase proposta por Fausto em sinal de sua capitulação “Oh, pára! és tão formoso!” remete a uma realidade em que se valoriza a velocidade, o novo – por mais vazio de verdadeira capacidade renovadora que esse novo seja –, a mutabilidade, o progresso. Em outras palavras, a forma artística direciona a uma realidade na qual o parar, o sentimento do aqui e agora, associa-se à desistência, à morte. Segundo Jaeger, vivenciamos o apogeu dessa disposição a negar o presente, porque tudo que vem à luz está fadado de imediato a ser substituído. A característica fundamental do Fausto goetheniano, portanto, é a incapacidade de satisfazer-se – trata-se da lógica do mundo da mercadoria, vivenciada em seus primeiros passos por Goethe na transição do século XVIII para o XIX.
Nada é banal no drama de Goethe. Ramm menciona a inclusão de Margarida como grande inovação do autor alemão em relação à tradição. Margarida (no diminutivo, Gretchen) é a primeira vítima do predador incansável que é Fausto, ávido pelos fins conquistados com a obscura ajuda demoníaca. Mefisto está em ação inclusive durante o sonho de construção de “ livre povo” de Fausto. Gretchen é a figura capaz de resistir ao poder mefistotélico, estando frequentemente em oposição a este, e à aspiração devoradora de Fausto. Na cena final da primeira parte da tragédia, ela recusa-se a aderir ao ritmo voraz que culminará com a sociedade industrial fundada pelo pactário ao final da segunda parte, na chamada Tragédia do Colonizador. A recusa de inserir-se proporciona a morte de Margarida, e também a eliminação de Filemon e Baucis, episódio ainda mais ilustrativo sobre a destruição daquilo que não se adequa à grandiloquência dos planos fausticos.
A sensibilidade do autor em depositar no drama os conflitos do “povoamento novo” pelo “livre povo” – a ascensão das ideias liberais em uma sociedade de indústria nascente –, torna o Fausto uma leitura essencial para compreender a nossa realidade. O Fausto de Goethe contém a tragédia da modernidade, ou de forma mais clara, das ideias e das práticas que se constituíam naquele contexto vivenciado por Goethe, basilares para o nosso presente. À luz do drama goetheniano, é possível ler o pacto entre as forças obscuras e homens com o fim de realizar as mais altas aspirações, que se arcaízam no instante no qual são concretizadas. Trata-se da insaciabilidade que arrebata quem está na margem, quem não consegue adentrar a célere dinâmica dos desejos de um Doutor Fausto...
O artigo de Ramm aponta para a especial fecundidade da lenda do Doutor Fausto em períodos de graves crises morais, como pode ser evidenciado pelas relevantes obras literárias produzidas sobre o Terceiro Reich as quais contém o motif do pacto faustico, sendo desses o romance de Thomas Mann, Doutor Fausto (1948), a mais célebre realização no século XX relacionada a esse mito. Diante dessa afirmação, não parece inconsequente que surja, neste momento, em um grande veículo jornalístico internacional como a BBC, um artigo que se proponha a refletir brevemente acerca da contemporaneidade – marcada pela falência das mais altas aspirações para o chamado “progresso humano” – por meio da tradição faustica.
*Ao professor Marcus Mazzari, cuja disciplina de Literatura Comparada II na USP atualmente curso, caso venha a cruzar com este texto, meus sinceros agradecimentos. Muito do que aqui foi escrito deve às aulas que venho assistindo.

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