The Handmaid’s Tale - Um lançar de olhos.
- Gyorgy Laszlo
- 30 de out. de 2017
- 3 min de leitura
The Handmaid’s Tale (1990, traduzido para o português como A Decadência de uma espécie), quase poderia não se passar por um filme de distopia. Em um cenário pós-catástrofe que transformou o mundo em um “deserto de infertilidade”, a República de Gilead é dominada por homens brancos que se guiam pelas leis do Antigo Testamento. As mulheres brancas vivem em uma violência sistemática, divididas entre “gados” e “saudáveis” - as que ainda podem parir. Esta divisão, mais cruel do que aparenta (afinal mulheres negras, mesmo férteis, não são marcadas como "saudáveis" - praticamente as únicas pessoas negras que passam pela tela são homens dentro de um camburão!), força-as a se tornarem "donzelas", rezarem pela fertilidade e terem o autodomínio como forma suprema de dignidade.

Inspirado no livro homônimo da canadense Margaret Atwood (ponto de partida, também, para a nova série da HBO), o filme, roteirizado e dirigido por homens, traz em alguns pontos uma aura masculinizada. O modo como retrata a relação amorosa entre duas personagens, Kate/Offred (Natasha Richardson), atormentada por tristes perdas, presa numa situação de violência e intimidação constante, com Nick (Aidan Quinn), um misterioso empregado, mostra, ao menos, uma falta de sensibilidade, senão entendimento: em uma cena, por exemplo, Nick, ao vê-la subjugada, vulnerável, chorando em desespero na janela, diz um seco “saia daí”. Apesar da ação de certo modo se justificar posteriormente, não deixa de trazer um amargor: diante de uma violência, o homem diz para a mulher se conter. Tal amargor, infelizmente, reaparece repetidas vezes durante todo a projeção.
Dito isto e a sensação episódica que nos traz, que nunca nos permite uma imersão fluida, mas sempre em solavancos, o filme conta uma história intensa, que reflete sobre questões importantíssimas, aprofundando-as dentro de seu próprio fazer cinematográfico. Destaco a boa escolha das cores e a cuidadosa cinematografia.
Pelas cores dos figurinos e cenários o filme acentua e complexifica o que nos mostra: o branco da neve e das flores sublinha uma frieza e austeridade que permeiam a aristocracia - são flores brancas que Serena Joy (Faye Dunaway) cultiva, planta e colhe para enfeitar a alcova. O vermelho, que remonta à volúpia, à carne e ao sangue das vestes das donzelas está sempre em contraste com o pretenso augusto e sagrado azul das comandantes. E o verde, pontual, consegue, mesmo atrapalhado pelos problemas de roteiro, trazer certa beleza e esperança para determinada cena, de intimidade e prazer.
Quanto à cinematografia, a interessante escolha de composição e enquadramento constantemente simétricos, nos faz imergir nesse universo opressivo, cruel e metódico. Assim, quando surgem quadros tortos ou assimétricos, entendemos e podemos sentir, junto às personagens, algum tipo de alívio.
Três cenas, que se passam dentro do banheiro, nos convidam a refletir sobre a situação apenas com a escolha do posicionamento da câmera: na primeira, somos colocados sobre duas divisórias, observando de cima a conversa entre duas mulheres (e o gancho em uma das paredes assemelhando-se a um objeto fálico, em contraste, é um singelo indicativo do porvir); noutra, em um momento de aparente libertação, vemos um enquadramento retilíneo e harmônico; e, por fim, noutro diálogo, com duas personagens sentadas sobre a pia, a câmera destaca o espelho que as multiplica - elas são muitas, tanto subjetivamente (por conta de tudo que passaram), quanto objetivamente: quantas vezes o tema desta conversa não foi falado em confidência, naquele mesmo lugar, por outras tantas mulheres?
É preciso, também, pontuar duas outras intensas cenas e o modo como somos
cuidadosamente colocados nelas: a condenação, que traz um belíssimo e forte plano, onde somos cúmplices, de mãos seguras à corda. E o parto, com a câmera, subjetiva, nos colocando nos olhos da grávida, com o rosto da parteira deformado - uma cena que teria tudo para comover, mas que amedronta. O bom uso desta perspectiva casa com seu contexto: uma reunião asséptica de socialites que brindam a vida deste modo deturpado e tirânico.
Do culto cego à gravidez (que coloca a homossexualidade como crime), a estigmatização cruel do aborto, o fundamentalismo obtuso, a mulher colocada nesta situação degradante e as pessoas negras completamente excluídas, o que mais assusta em The Handmaid’s Tale é sua estranha familiaridade.

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